Uma reflexão de António Jorge Ferreira
‘Covid-19:
– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ estão em ocaso?
– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ se vislumbram na (estão em) aurora?’
– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ estão em ocaso?
Não creio que haja algo em ocaso e algo a nascer, na Igreja e no mundo, por causa da pandemia. Ou melhor, temos de ir por partes e hipóteses. Se o vírus estiver muito tempo entre nós, aí uma década, algo vai mudar, sim. Se desaparecer em 2020/21 por causa da vacina ou por se ter alcançado a imunidade de grupo, tudo vai continuar em 2021 ou pelo menos em 2022 como era em 2019. E o vírus será recordado como aquele incómodo de 2020. A curto prazo, mudou tudo. A longo prazo, nada.
De resto, no mundo, os dois grandes problemas continuarão por resolver, com ou sem vírus: a fome (e nisto incluo o desenvolvimento para todos) e a crise ecológica (clima doente, agressões à natureza, etc., ou seja, casa para todos) – coisas, que, como afirma o Papa na “Laudato si”, estão ligadas. A encíclica, como sempre defendeu, é social e ecológica.
Não há nada em causa, então, na Igreja, por causa do covid? Há, sim. Há comportamentos que têm de fazer pensar os responsáveis da Igreja (em que me incluo, porque todos os batizados são responsáveis da Igreja). Não sei se tais comportamentos vão continuar no pós-covid, mas no momento fazem-me pensar. Refiro-me à participação nas missas. Por onde tenho andado tenho visto que os lugares continuam por ocupar. São menos, mas sobram sempre. Parece que as pessoas aproveitaram o covid para fazer algo que estava latente: deixar de ir à missa. Agora que podem voltar, não voltam.
É preciso notar que o vírus fez algo que nunca tinha imaginado ser possível na Igreja. Julgo que, pela primeira vez na história, os bispos pediram que não se celebrasse a Eucaristia com assembleia nas igrejas. A ciência assim o exigiu. Noutros tempos, apregoar-se-ia um Deus que é maior que o vírus. Far-se-iam peregrinações e promessas para o vírus desaparecer. No tempo da secularização, sabemos que o vírus é uma questão de ciência, não da religião. Poderia ter sido diferente? Visto do futuro, acho que poderia. Mas tudo era novo. E foi fácil cumprir o não ir à missa. Mas agora que as pessoas já podem ir à igreja… Vão? O que acontece é que já não somos como os cristãos do século IV no tempo das perseguições. Podemos viver sem o domingo. Mas cristãos que vivem sem o domingo são realmente cristãos? E isto faz pensar na questão seguinte. Talvez o covid seja um agente do Espírito Santo para mostrar quem é o “resto de Sião”, para dar cabo dos resquícios da cristandade de que alguns têm tantas saudades, para fazer brotar um cristianismo de minorias, mas mais fermentador.
– Que ‘mundo’ e que ‘Igreja’ se vislumbram na (estão em) aurora?’
É uma ilusão pensar que a não permissão de ir à missa levou os cristãos, na generalidade, a rezarem em casa, a participarem na missa à distância, a lerem a Bíblia, a terem catequese no youtube. Mas esta convicção (será possível ter estatísticas?), a do fim das ilusões, poderia ser o motor para a mudança, em vez da preocupação de ter toda a pastoral que tínhamos antes do covid, mas agora à distância. Por outros palavras, há coisas que é preciso fazer independentemente do covid. O covid só foi o catalisador que acelerou a reação. Veio mostrar a pertinência de tais mudanças.
A Igreja (só falo dela) que gostaria de ver em “aurora”, sendo a mesma desde que há Igreja, poderia ser assim:
Igreja que é consequência do encontro com Jesus. Sem medo da liberdade. Ora o encontro pessoal tem de ser feito por opção própria e não por pais, padrinhos ou tutores, que podem ajudar, mas nunca tomar a decisão pessoal, exclusiva de cada um, ainda que em comunidade e com consequências comunitárias. O que temos na Igreja é que uma criança é batizada por vontade dos pais, vai à catequese por vontade dos pais, faz o Crisma por vontade dos pais (ainda que não supostamente). A decisão fundamental (o batismo) não é livre nem consciente. Até parece que se nasce cristão. Isto dá que temos muitos cristãos nominais, mas menos de convicção. E quando um jovem toma a primeira decisão pessoal em termos de fé, geralmente é esta: não ir mais à Igreja.
1. Igreja sem medo da verdade. É verdade que há sete sacramentos para homens e só seis para mulheres? Pode-se ser católico e defender o aborto? A eutanásia? Católicos que não acreditam na ressurreição, mas aceitam a reencarnação? Pessoas que se casam pela Igreja sem acreditarem no casamento católico? Cristãos que não rezam? É preciso um banho de verdade e de razões sólidas, mas só o podem receber pessoas livres (ponto 1).
2. Igreja livre, sem depender do Estado para a sua ação social (ou seja, com ação social à medida da generosidade dos cristãos), com pastores centrados na missão de acompanhar as ovelhas e que sejam mesmo portas (ou fontes ou pontes) de acesso à espiritualidade cristã libertadora.
Resolvidos estes pontos, venha o covid que vier, a família continuará a ser a igreja doméstica que está chamada a ser. O cristão confinado não será muito diferente do não confinado porque a sua experiência comum é simples: o cristianismo começa em casa. Mas algo disto vai acontecer? Não me parece.
António Jorge Ferreira, Diretor-adjunto do Correio do Vouga
NOTA: Transcrito, com a devida vénia, de Comissão Diocesana da Cultura
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