quinta-feira, 26 de março de 2020

Ser família em tempo de coronavírus

Crónica por Manuel J. Rocha 

Já vamos a entrar na segunda semana de isolamento em que a palavra de ordem é "ficar em casa" para além dos que têm de marcar presença diária nos mais variados trabalhos que o viver em comunidade a isso obriga. Para eles, protagonistas de tantas histórias de amor, um gesto de parabéns, como aliás lhes tem sido manifestado, das mais diversas formas. 
Hoje, já é possível olharmos para trás e vermos a responsabilidade e maturidade de um povo que, na sua generalidade, soube  estar e comportar-se, traduzindo esses valores em tantos momentos de solidariedade e concretizados em gestos tão simples quanto estes: "Se hoje não tiver dinheiro para comprar pão, pode retirar aqui o seu. Deus te abençoe". Ou este: "Tenho uma casa com três quartos, cedo-a para o pessoal da saúde". E mais este: "Deixo aqui o meu nome e número de telefone. Se alguém precisar de mim para ir à farmácia ou ao supermercado, estou à disposição...". E surgiram grupos e associações de ajuda e portas abertas para os mais velhos e grupos de riscos, tecendo uma teia de solidariedade numa trama fios que só Deus conhece e a memória das gentes guardará para mais tarde recordar. 
Mas aquilo que mais me impressionou ao longo destes dias passou-se dentro das paredes de tantas casas onde o número de habitantes se alterou, quer no número, quer nas horas de presença. Tudo isto porque as escolas e  IPSS fecharam, muito do trabalho, possível, passou a fazer-se a partir de casa junto com as refeições e os tempos livres e os passeios e os jogos e as conversas e o tempo que nunca mais passa... e tudo a girar à volta daquele espaço e com os mesmos personagens a que podemos chamar a família: a minha família em casa! 
E foi a partir daqui que me vieram as notas desta semana. Afinal, a Diocese tem como plano de pastoral para este ano: "A família como caminho de santidade". E dentro destes planos arquite- támos alguns pressupostos que nunca é demais recordar: "criar uma cultura de família que passa por conhecer, promover e defender os direitos da família e dos seus membros"; "ajudar a crescer: formar e ajudar os casais e as famílias a progredirem ao longo de toda a sua vida no amor mútuo, total e fecundo"; "olhar as famílias e ajudá-las a superarem as dificuldades"; "reaprender a narrar e a celebrar a realidade da família, o tempo, as festas, os sucessos e os fracassos..." 
Apesar da beleza e da ousadia destes pressupostos, tivemos, até ao presente, algumas dificuldades em concretizá-los porque, dizia- -se: "não há tempo para estarmos juntos"; "as horas não coincidem"; "os trabalhos são muito dispersos"; "o cansaço à noite já aperta"; "o ritmo da vida dificulta a atenção às coisas pequenas"; "o sono tira lugar ao beijo e à oração e o boa-noite desfaz-se no sonho". Mas, de um momento para o outro, tudo mudou como se um clic nos despertasse de um sonho e nos levasse a um mundo outro, sem as seguranças que sonhávamos, as certezas que norteavam as nossas vidas, o poder que julgávamos possuir, os objetivos que tínhamos traçado e até as férias já marcadas. E vem a quarentena que nos faz ficar em casa, uns com os outros e uns para os outros. Faz-nos recordar jogos que nunca tivemos tempo de jogar; inventar estratégias para que o relógio não fosse tão lento ou recriar as histórias do lobo mau, dos bandidos ou dos ladrões. Faz-nos perceber que não somos sozinhos e reensina-nos a viver a realidade desta família que é a minha, a tal que é caminho de santidade e a saborear, de novo, o que é ser comunidade. Dizia o nosso cardeal José Tolentino de Mendonça, a propósito: "...Este pode ser o momento de irmos ao encontro daquilo que perdemos; daquilo que deixamos sistematicamente por dizer; daquele amor para o qual não encontrámos nem voz nem vez; daquela gratuidade reprimida que podemos, agora saborear e exercer". 
Afinal o Plano que tínhamos ar- quitetado, e bem, começou a ser realizado, por causa de um vírus chamado "coronavírus". Ou melhor, prefiro dizer que é Deus que o concretiza, em cada uma das nossas famílias. 

Manuel J. Rocha
Padre. Vigário geral da Diocese de Aveiro 

Nota: Publicado no Correio do Vouga



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